11 de julho de 2014
Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? Não, não e não. Espelho meu, seu - nenhum! - chegaria a tamanha ousadia. Algumas das lembranças mais remotas, da infância, são as tardes de Branca de Neve e os Sete Anões. Era o meu desenho preferido, de modo que algumas cenas eram absorvidas por mim intensamente: o canto da Branca de Neve para os pássaros, a maçã envenenada que, de tão formosa e vermelha, me atraía, a floresta negra e perigosa. Finalmente, a Rainha Má. Ela. O exemplo de maldade e feiura que eu carreguei. Modelo que, aos poucos, foi amadurecendo... Os espelhos da vida refletiram outras feiuras que não a vaidade da rainha.
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Angelina Jolie como Malévola, vilã de Bela Adormecida. |
Sapatinho de cristal, vestido bufante e cavalo branco à parte, as princesas, modelo de feminilidade e delicadeza, sempre trouxeram mais do mesmo: a bondade inocentemente cega, a beleza inquestionavelmente atraente, a voz heroicamente cantarolante (que afasta todos os problemas do mundo - ou, chama esquilos e coelhos da floresta para isso).
E então você me pergunta: e a maldade? Ah, a maldade. Cercada de rugas, peles verdes, vozes grossas e olhares sombrios e, sim, meio amarelados. Cenas escandalosamente úmidas e escuras. [Já repararam o quanto chove, no momento em que se apresenta um vilão? Será a tempestade o símbolo ou a previsão de algo sombrio por vir?]
A questão é que a maldade, por um motivo ou outro, vem sempre acompanhada de criaturas disformes ou mulheres em idade muito avançada. Bem, até Angelina Jolie. Espelho, espelho meu, melhor eu não perguntar agora.
Malévola, recente produção da Walt Disney Pictures, dirigida pelo Robert Stromberg, traz a receita: vilã como personagem principal, os lábios carnudos mais populares de Hollywood pintados de vermelho. Angelina, após quatro anos dedicados à família, volta às telas de cinema, em filme que desbancou a nova produção de X-Men, arrecadando, durante o primeiro fim de semana de exibição, US$ 70 milhões (contra os US$ 32,6 milhões de ‘X-Men: Dias de um futuro esquecido’).
Interessante se fosse uma causalidade, mas, a beleza representada por um papel de personagem má não é o único ingrediente incomum que surge no prato principal. Nosso paladar, ao assistir ‘Malévola’, ganha sabor diversificado pelo incremento às novas ‘especiarias’ do filme: um roteiro pouco convencional.
A trama é introduzida por uma luta, travada em poucos minutos desde o início da narrativa. A ação nos coloca aos plenos fôlegos que um desfecho permitiria. Tudo ali, logo de cara. O momento é propício ao contexto social e ao entendimento da história. A sequência que se desenrola, revela o hibridismo entre arte e humanização: enquanto os cenários ganham cores e magia, representados pelas fadas, flores e florestas, a história e os personagens trazem apelo verdadeiramente humano. Nos aproxima pelas emoções, atitudes e escolhas.
E Angelina? Bem, a tal da maldade fica bonita, fica em cena, ganha corpo. Malévola sobrepõe-se à princesa do próprio conto de fadas: a tal ‘preguiçosa’ Aurora, que nunca compreendi ao certo. E então você me pergunta: espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? Só que a maldade, nesse caso, vai muito além de estética. Ela chega à sua própria raiz.
A criatividade da produção atinge o ponto delicado em que muitas outras não foram capazes de expressar: e o mal, de onde vem? Me parece que ele está sempre enlatado, pronto para ser engolido goela abaixo. Isso porque, como já dizia Thomas Hobbes, a natureza do homem é conflitiva - ‘O homem é o lobo do homem’. E, então, pouco nos é explicado: filmes, livros e produções culturais simplesmente fazem-nos engolir a maldade.
Aqui, não. Nós a mastigamos. ‘Malévola’, portanto, torna-se insuportavelmente íntimo: nos expõe às suas causas e razões de ser. Em entrevista à Folha de S. Paulo, a própria Angelina Jolie afirma que ‘para combater o mal, precisamos entendê-lo’. Curioso é que, em charme e elegância, a atriz interpreta sua própria teoria.
Há uma frase do poeta inglês John Milton de que gosto muito e diz que ‘toda a maldade é fraqueza’. No caso de Malévola, um pacote de pipoca amanteigada e um ingresso são o bastante para comprovar tal afirmação. Fraca ou não, mantém-se bela e intensa; Muito mais exposta a nós, do que um simples reflexo de Rainha Má. Espelho, espelho meu, existe... Ah, deixa pra lá!
Vem, me dê a mão. A gente agora já não tinha medo. No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido...
— Chico Buarque
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